Ivo Serrão Vieira: pioneiro de dois estados

Ivo Serrão Vieira
– Alemão, barriga de cachorra velha, desgraçado! Vem cá, alemão, vem cá! Vem aqui falar com o campeão, vem! Vem cá, alemão! Olha lá que ele tá com as bochechas que chega a tá tremendo, minha mãe do céu! Vem cá! Vem cá, alemãozinho.
Chega aqui perto! Que cara é essa? Não vai chorar na minha frente, alemãozinho! Tu não é disso, que eu sei. Não vai chorar, barriga de cachorra velha. Ora, coitadinho do alemão…
A gargalhada inicial e a voz esganiçada a debochar do corpulento Alemão, o torcedor do Grêmio Foot-ball Porto-alegrense interpretado por Walter Broda, anuncia a presença, ao microfone da PRH-2 – Rádio Farroupilha, da parte colorada, o Negrinho fanático pelo Sport Club Internacional, vivido pelo ex-ator de circo e teatro Ary Marinho, que ninguém conhece por este nome, mas que todos identificam pelo apelido Pinguinho, referência direta ao porte franzino do comediante de um metro e meio de altura. É mais um Drama do futebol, humorístico de sucesso, em especial, no dia seguinte a um Grenal, daqueles que decidem o Campeonato Gaúcho.
Aí, o vencedor tripudia, com gosto, sobre o perdedor para a graça de todos, os que torcem por um ou outro time, os que estão em casa ou no Auditório Associado, na Sete de Setembro, centro de Porto Alegre. Então, o movimento em frente às instalações da emissora começa bem cedo. Horas antes, já chegam pessoas, formando, aos poucos, uma longa fila para obter um dos lugares disponíveis e garantir, assim, a possibilidade de, além de ouvir, ver os dois atores que entram no palco somente às 12h05.
Um dos mais lembrados humorísticos do rádio porto-alegrense, o Drama do futebol explora, ao longo dos anos 50, a dualidade típica do gaúcho: de chi-mangos e maragatos a, no caso do programa, gremistas e colorados. Na criação, no entanto, está o catarinense Ivo Serrão Vieira, natural de São Francisco do Sul e pioneiro da Rádio Guarujá, de Florianópolis. A ele, o rádio do Rio Grande do Sul deve alguns de seus momentos mais engraçados.
Se em Drama do futebol o cotidiano urbano constitui-se na principal referência para a comicidade, outra criação de Serrão Vieira explora a vertente i-naugurada no centro do país, ainda nos anos 30, na qual a sala de aula ser-ve de ambiente para situações humorísticas centradas em um aluno problema. É Aula de Dona Rita – depois, rebatizado como Escola de Dona Rita – , com um caráter que seu criador considera “pedagógico-humorístico”. Um exemplo é este trecho em que a professora enfrenta o aluno-problema Seu Jojó:
– Seu Jojó, fale sobre o Rio Amazonas!
– Rio Amazonas, professora?
– Preste atenção que eu vou dizer uma vez e, depois, o senhor vai repetir: O Rio Amazonas nasce no Peru, atravessa o Brasil, de leste para oeste, e lança-se no Atlântico, através de um vasto estuário, no meio do qual está situa-da a Ilha de Marajó. Repita!
– O Rio Amazonas nasce de um Peru, atravessa o Brasil de leste para o fa-roeste e se lança no transatlântico, através do vestuário, no meio do qual está sentada a galinha carijó.
Em 1950, Ivo Serrão Vieira transfere-se para a Gaúcha e, em função de Aula de Dona Rita, protagoniza a primeira disputa por direitos autorais da história do rádio do Rio Grande do Sul. Dois anos e meio depois, a justiça vai dar ganho de causa ao produtor, que negocia a continuidade da atração na PRH-2.
Antes, no final dos anos 40, Serrão Vieira cria um outro humorístico que pa-rodia filmes de sucesso ou inventados por ele e apresentados como tal: O cangaceiro, Otelo e Desdêmona, Romeu e Julieta, Tarzan e o homem da calça frouxa, Vôo ao planeta Marte… De 1948 a 1949, com suas estórias completas, o programa Rádio comédia vai ao ar nas noites de quarta-feira e, posteriormente, nas de segunda. Por volta de 1953, com o produtor de volta à Farroupilha, ocupa uma faixa do horário noturno, aos sábados. Reveste-se de importância por se constituir em um dos únicos registros sonoros existen-tes da época.
Pelas gravações, pode-se verificar o intenso – e, neste caso específico, habilidoso – recurso ao trocadilho nas produções humorísticas deste autor. Um exemplo aparece no trecho a seguir da versão – “avacalha-da”, no dizer de Serrão Vieira – de O cangaceiro, de Lima Barreto, sucesso internacional do cinema brasileiro, lançado em 1953 pela Companhia Cine-matográfica Vera Cruz e premiado no Festival de Cannes. Trata-se da aber-tura do programa na voz do próprio produtor e dos locutores Euclides Prado e Ronald Pinto:
Locutor 1 –- A Companhia Cinematográfica Ver a Cruz no Cemitério tem o prazer de apresentar…
Locutor 2 – …a sua maior criação em matéria de pastelão, intitulada…
Locutor 3 – …O cangaceiro…
Locutor 1 – Uma vibrante estória de aventuras passada nas catingas nordes-tinas. E são tantas as catingas que aparecem nesta fita que é bom que você tenha um lenço à mão.
Locutor 2 – A vibrante narrativa de um homem mau que tinha muito de bem. Ou de um homem de bem que tinha muito de mau. E que, apesar de mau, fazia bem. E, apesar de fazer bem, era mau.
Locutor 3 — Esta é a comovente estória de um cangaceiro que ensinava a fazer lenda, de uma professora que ensinava o beabá, de uma rendeira que ensinava a fazer renda e de um boboca que aprendia a namorar.
A comicidade de Ivo Serrão Vieira vai chegar aos anos 80 no serviço de Dis-que-piadas, outra criação sua, da então Companhia Rio-grandense de Tele-comunicações. Readaptando esquetes antigos e criando novos, o produtor faz, então, centenas de pessoas ligarem a cada dia para o serviço da CRT. Dono de um dos mais antigos estúdios de gravação do Rio Grande do Sul, Serrão Vieira faleceu no dia 26 de novembro de 2001, aos 80 anos.
Nasceu e cresceu ouvindo rádio e as histórias do rádio. Aos poucos foi descobrindo que não queria ser só ouvinte. Formou-se em jornalismo pela UFRGS e começou a trabalhar no rádio. Doutor em Comunicação e Informação é professor do curso de Jornalismo da Universidade de Caxias do Sul/RS. É autor de vários livros.
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